Por Rev. Jorge Aquino, ose
Um dos mais conhecidos e respeitados bispos anglicanos do século XX certa vez disse que a igreja anglicana era, simultaneamente, a “pior” e a “melhor” de todas as igrejas. E explicou: a melhor, porque todos têm que ouvir o que você tem a dizer; a pior porque você tem que ouvir o que os outros têm a dizer.
Hoje somos convidados a fazer uma breve reflexão sobre um tema por demais importante e, ao mesmo tempo, difícil: “A Comunhão Anglicana e o desafio da inclusividade”. Queremos, antes de mais nada, agradecer o convite que nos foi formulado pelo nosso Arcediago para esta palestra e dizer da importância de debater este tema dentro deste ano que é um ano afirmativo para a diocese anglicana do Recife.
Antes de iniciar propriamente nossa breve reflexão é mister dizer algumas palavras sobre o significado do termo inclusividade. Positivamente, diríamos que a inclusividade pode ser entendida como aquela disposição mental na qual você está, a priori, aberto para ouvir e se enriquecer com a experiência e com a visão do seu dessemelhante. Neste aspecto, a inclusividade é radicalmente o oposto da exclusividade. Na visão e na postura exclusivista, só eu tenho a verdade, só eu conheço a verdade, quem pensa diferente de mim está no erro e, o que é pior, quem pensa diferente de mim, pensa diferente de Deus, porque Deus concorda comigo. O exclusivismo e a impermeabilidade ao novo e ao diferente são duas das grandes marcas presentes nos grandes movimentos fundamentalistas revelados pela história a fora. Sejam eles cristãos, muçulmanos ou judaicos. São, portanto, sociologicamente, marcas daquilo que se convencionou chamar de “seitas” e que se distinguem das “religiões estabelecidas”.
O anglicanismo se entende e se vê, definitivamente, como uma instituição inclusivista. Todas as Conferências de Lambeth, assim como todos os grandes documentos produzidos no seio desta enorme Comunhão de províncias, revelam este traço que é simultaneamente uma realidade que experimentamos e um alvo que buscamos.
Ser inclusivista não é fácil. Esta atitude produz muita tensão e muito desconforto. Particularmente em pessoas inseguras. Por isso nosso desafio constante para viver, no seio da Comunhão Anglicana, esta realidade. Portanto, diante da proposta anglicana de se viver a inclusividade na prática e em todas as dimensões da realidade eclesial, somos desafiados a nutrir e a praticar pelos menos algumas atitudes fundamentais.
1. A inclusividade nos desafia, em primeiro lugar a uma atitude de humildade.
O estudo sério da teologia e as recentes considerações e pesquisas que tratam da filosofia da linguagem e da epistemologia, nos levará a ver que toda teologia está mediada pelo discurso. Ora, se todo discurso e toda predicação é limitação, não podemos, propriamente, “falar de Deus” sem que, em via de consequência, o limitemos. Daí a importante tomada de conhecimento de que toda a nossa visão de Deus é sempre penúltima e sempre transitória.
É penúltima e transitória em função de nossa linguagem que jamais poderá dizer “ultimamente” e “definitivamente” “tudo” sobre o ser de Deus. É penúltima e transitória também em função dos condicionamentos histórico-temporais que temos e que “embotam” um correto entendimento acerca da pessoa de Deus; finalmente, é penúltima e transitória em função da realidade de nossa condição humana descrita na forma de uma “queda”. Se somos uma humanidade “caída” e, portanto, composta por seres inaptos para atingir, de moto próprio, um conhecimento definitivo e seguro, sem que a graça de Deus nos atinja primeiro, somo incapazes de “conhecer” e de “aprisionar” Deus dentro de categorias e de estruturas linguísticas que serão sempre limitadas e limitadoras.
Os fundamentalistas não pensam assim. Eles acreditam que já sabem de tudo a respeito de Deus. Eles já o “dissecaram” a pondo de conhecer todos os desígnios e todos os pensamentos de Deus. Eles já sabem como Deus “funciona”, quais seus desejos mais íntimos, o que ele gosta, como ele é, quais suas características, atributos, etc. os fundamentalistas acreditam que já conseguiram “engarrafar”, “encapsular” e “domesticar” Deus. O que eles não entendem é que, ao fazerem isso estão, na verdade, eliminando o “mistério” e o “imponderável” de nossa realidade. Estão minando a possibilidade de uma ação “sobrenatural”, uma vez que todos os possíveis atos de Deus já são previstos. Estão eliminando, em ultimo grau, a própria fé, vez que se a fé é a prova do que se espera, e já não esperamos mais nada de Deus, não precisamos mais crer. Eles estão, de fato, criando um ídolo.
Um anglicano não pode ter esta perspectiva. Deus será sempre um mistério para quem é inclusivista. O mundo não é um sistema fechado mas aberto à ação soberana de Deus. O anglicano tem noção da incapacidade do homem em descrever Deus, mas sabe que “o que de Deus se pode conhecer” pode ser conhecido através das Escrituras, da revelação de Deus, de Jesus Cristo. Este conhecimento jamais será exaustivo, mas com toda certeza é um conhecimento veraz. O pouco que podemos conhecer sobre Deus, podemos conhecer verdadeiramente e podemos conhecer porque Ele se quis revelar.
2. A inclusividade nos desafia, em segundo lugar a uma atitude de tolerância.
Tolerância é um outro nome para complacência e transigência. O tolerante é alguém indulgente, complacente, transigente. Somos convidados a suportar, digerir e assimilar. Duas verdades podem ser destacadas aqui. Primeiro que a tolerância pode ser desenvolvida por meio do fruto do Espírito Santo conhecido como longanimidade. Aquele que é longânime desenvolve também a tolerância. Em função disso bom seria que todos os cristãos, e não só os anglicanos, fossem tolerantes.
Uma outra verdade relacionada com a tolerância é que Jesus é alguém que nos serve como exemplo desta atitude. Ele, de fato, tem mais paciência com as pessoas do que os religiosos da época. Na realidade, a vida de Jesus é uma vida de constantes encontros com aqueles que nunca são tolerados e amados. Jesus se aproxima de leprosos, de prostitutas, de mulheres, de publicanos e pecadores, de sírios e samaritanos, de cegos e doentes. Jesus os toca e se deixa tocar por eles. Jesus os abraça e os acolhe na comunidade dos que têm fé. Nem o “passado” nem a “realidade presente” desta pessoas se constituem em impedimento para que Jesus as ame e as receba.
O testemunho dos evangelhos claramente nos faz ver que Jesus só é duro com as pessoas que desenvolveram esta intolerância que afasta, que segrega, que separa as pessoas e as classifica em melhores e piores.
Os anglicanos são convidados a desenvolver também, assim como seu Senhor, a tolerância e a inclusividade. Somos convidados a ter em nosso coração a mesma disposição que há no coração do Pai. O Pai nos suporta, nos compreende, nos tolera, mesmo quando nos afastamos dele. O Pai nos reconhece quando voltamos e corre para nos abraçar. O Pai não teme pôr um anel em nosso dedo e dar uma festa quando um filho volta ao lar. Ele não nos recebe com as portas fechadas mas com o coração e com os braços abertos. Há uma explicita dimensão materna na paternidade de Deus. Deus, em sua santidade, nos acolhe a nós pecadores e fracos como somos. Quem somos nós para não acolher a quem Deus acolhe? Quem somos nós para acusar, julgar, condenar e executar a quem Deus, que é “mais justo” que nós, acolhe com perdão? Se estamos no Espírito, devemos também viver nos Espírito, portanto, na tolerância.
3. A inclusividade nos desafia, em terceiro lugar a uma atitude de aprendizado.
Alguém já disse certa vez que não há ninguém que seja tão rico que não precise de nada e ninguém que seja tão pobre que não possa dar alguma coisa. Esta mesma verdade também se aplica às nossas relações de aprendizado e ensino. Ninguém é tão inteligente que não possa aprender mais nada e ninguém é tão ignorante que não tenha nada a ensinar.
Na Comunhão Anglicana vivemos uma coexistência – nem sempre pacífica – entre diversas correntes. Sabemos que para muitos isto tem sido encarado como uma das fraquezas do anglicanismo, mas minha convicção é que, ao contrário, devemos compreender que esta diversidade é na realidade uma das nossas maiores riqueza. É uma riqueza porque podemos aprender com setores ao mesmo tempo tão diversos e tão próximos de nós. Cada corrente tem muito o que compartilhar com as demais. Os liberais, por exemplo, podem ensinar muito sobre a importância de um estudo mais sério das Escrituras à luz das recentes descobertas da ciência. O liberalismo sério – diferente da postura vanguardista irresponsável de tendência fundamentalista de esquerda, defendida por alguns – tem uma preocupação básica extremamente relevante: falar da fé cristã nas categorias que o mundo possa compreender. O liberal, portanto, pretende fazer uma espécie de apologia do cristianismo ao traduzi-lo e torna-lo palatável a uma geração que trabalha e usa categorias diversas daquelas que são usualmente citadas no discurso religioso. Os liberais são aqueles que estão constantemente abertos para compreender o mundo que o cerca e as dores que o afligem. Sem a contribuição dos liberais podemos correr o risco de falar com categorias que já não significam nada e de responder a perguntas que já não são feitas. Eles contribuem, portanto, com a agenda de discussão e com as categorias de um discurso relevante. Nossas igrejas, sem a contribuição dos liberais, certamente seriam mais irrelevantes para o mundo do que já são hoje.
Outro grupo que tem muito a ensinar são os anglo-católicos. Herdeiros e valorizadores da riquíssima tradição da Igreja medieval, os anglo-católicos podem ensinar a igreja moderna em pelo menos três itens: tradição, a espiritualidade e a beleza. Os anglo-católicos nos lembram constantemente que o anglicanismo não é uma aventura irresponsável que surgiu no século XVI por causa dos devaneios de um Rei egocêntrico. Pelo contrário, somos uma igreja com uma milenar, riquíssima e vastíssima tradição nas áreas mais diversas. Os anglo-católicos nos lembram sempre que o mesmo Espírito Santo que foi derramado sobre a igreja no dia de pentecostes a assistiu durante todos estes séculos orientando as decisões e iluminando os teólogos e estudiosos acerca de tantos temas relevantes ainda hoje.
Os anglo-católicos também têm muito a falar sobre espiritualidade. Em um mundo cada vez mais aberto à espiritualidade e à mística, e cada vez mais refratário ao discurso logocêntrico, os anglo-católicos podem ajudar em muito àqueles que querem “redescobrir” os temas e os métodos da espiritualidade do medievo. Com eles a igreja pode redescobrir a beleza e a profundidade do silêncio, da contemplação, da iconografia, dos exercícios espirituais, da meditação, etc.
Finalmente, a igreja tem muito a aprender com os anglo-católicos na área da estética litúrgica. O culto dominical, quer queiramos ou não, acaba por representar toda nossa confiança na razão (iluminismo) e toda a nossa dependência do intelecto à medida em que ele está completamente centrado no discurso. O púlpito é o centro. O sermão é uma aula. Vivemos em um logocentrismo desenfreado. O que não percebemos é que no mundo pós-moderno os discursos não são apenas verbais. Há uma gama enorme de potencial colocado na comunicação não verbal. Os sinais, signos, cores, gestos, as cerimônias, tudo isso ensina, educa, convence, constrói, mesmo quem não se diga palavra alguma. Nada contra um sermão que efetivamente ensine os valores das Escrituras, mas não podemos – se é que queremos atingir o homem todo, inclusive a sua alma – abrir mão do belo, do estético, da riqueza de significados que podemos passar também através deste aspecto tão importante da tradição da igreja.
Os carismáticos, sejam eles de origem anglo-católica ou evangélica, também possuem muito a ensinar. Com eles podemos aprender o fervor pela obra de Deus e a ênfase na presença do Espírito Santo. Os carismáticos, em primeiro lugar, são exemplos de fervor e de compromisso pela causa de Deus. Eles estão sempre dispostos a se envolverem nas atividades, estão sempre dispostos a um sacrifício a mais, que chova quer faça sol, eles são os primeiros a chegar, são os primeiros a se envolverem, são os primeiros a assumir algum ministério da igreja, são os primeiros a dar tempo e dinheiro para que o trabalho de Deus cresça. O compromisso e o zelo dos carismáticos são um exemplo que poderia ser seguido por todos os demais segmentos do anglicanismo. Mas não é só isso.
Os carismáticos também nos lembram que a igreja é um espaço privilegiado da ação do Espírito Santo. Não estamos sós, Deus está conosco na pessoa de seu Espírito. E é este Espírito quem dota a cada membro do corpo dos dons necessários para o crescimento e o amadurecimento deste mesmo corpo. É este mesmo Espírito quem também nos assiste na vivência e na prática do Fruto do Espírito, transformando vidas, convertendo pessoas, operando milagres, curando enfermos, gerando reconciliação entre os que antes viviam na discórdia, capacitando os irmão a perdoar aqueles que os magoaram, enfim, os carismáticos vivem sob o domínio e sob a ação do Espírito. E isto acontece porque Ele está conosco e em nós. Sim, os anglicanos certamente também podem aprender muito com os carismáticos.
Finalmente há os evangelicais. Este grupo crescente no anglicanismo também pode muito colaborar com o sua ênfase e com seu jeito de ser, para a coletividade desta Comunhão Anglicana. Os evangelicais ressaltam três grandes ênfases: as Escrituras, a conversão e a missão. A primeira ênfase característica dos evangelicais é as Escrituras. Para este grupo as Escrituras devem ser vistas como a base e o fundamento de nossas crenças, de nossa adoração e de nossa prática. A forte tendência a se fazerem sermões expositivos em série releva nitidamente a crença de que “todo o conselho de Deus” deve ser pregado para o “povo de Deus” produzindo assim transformação na vidas.
A forte presença da Bíblia na “fé e na prática” dos evangelicais produz a conversão: “a fé vem pelo ouvir e ouvir a Palavra de Deus”. E este é o segundo elemento constitutivo das ênfases evangelicais. A vida do cristão nominal precisa passar por uma mudança, uma transformação. Isto é visto como um “novo nascimento”, uma nova realidade espiritual que “deixa para trás as coisas que para trás ficam” e que nos faz agora caminhar para o “alvo de nossa vocação” olhando “para Jesus, autor e consumador da fé”.
Finalmente, os evangelicais são aqueles que valorizam a missão da igreja. Por “igreja” os evangelicais entendem “todos os cristãos batizados” que vivem sua fé em novidade de vida. A missão é uma ordem dada a todos e não apenas aos ministros ordenados. Todos temos que nos envolver de alguma forma e em alguma medida na missio Dei. O evangelho precisa ser pregado ainda hoje e produzindo as mesmas transformações que produziam no início. E é a pregação deste mesmo evangelho que produzirá uma renovação sempre constante na vida da igreja. Ser missionário significa ser proativo, ser propositivo, ter uma proposta diferente para oferecer ao mundo e esta proposta é o Reino de Deus, esta proposta é Jesus Cristo o “único caminho”, a “verdade e a vida”. Quem o segue não andará em trevas pois tem a luz do mundo.
4. A inclusividade nos desafia, em último lugar, a uma atitude de fidelidade.
Negativamente falando, a inclusividade não é a mesma coisa que relativismo nem a mesma coisa que sincretismo. Não é relativismo, porque no relativismo não há convicções a serem partilhadas. Tudo é volátil. Nada é seguro. Não há verdades absolutas, não há verdades confiáveis, não há no que se crê nem no que confiar em ultimo grau. Não há verdade alguma. Tudo é fluido e escorre pelos dedos.
Não é, tão pouco, sincretismo porque no sincretismo há uma absorção irrefletida de todos os postulados e de todas as crenças mesmo que isto acabe por criar um “samba do crioulo doido” teológico e conceitual. No sincretismo todos os discursos são nivelados e possuem um igual valor de verdade. Não há um critério externo a partir do qual se possa julgar qualquer coisa. Na realidade não há critério algum.
Não é esta a inclusividade que emerge dos documentos oficiais da Comunhão Anglicana. Uma leitura, por exemplo, dos textos produzidos pelas cinco ultimas Conferências de Lambeth nos fará concluir que há claros limites na inclusividade anglicana.
Para concluir, creio ser didático compreender o que está ocorrendo em nossa Comunhão Anglicana através de dois fatos recentes de muita importância para nós. O primeiro deles foi o convite feito pelo Nashotah House – o principal e mais conservador seminário anglo-católico do mundo – para que um membros do staff do Trinity Episcopal School of Ministry – o mais conservador seminário evangélico dos Estados Unidos – se tornasse seu Deão acadêmico; o segundo foi o convite feito ao Bispo Maurice Sinclair para ser o pregador no retiro anual de uma das maiores sociedade anglo-católica do mundo. No mundo inteiro as tendências anglo-católicas e evangelicais estão se reunindo para estudar e orar com mais frequência.
O lugar privilegiado onde se pode ver mais claramente este bonito entrosamento entre as diversas correntes é o culto. Mais e mais paróquias em todo o mundo estão desenvolvendo uma atmosfera cúltica na qual a presença de um bonito e rico cerimoniário anglo-católico e um excitante louvor carismático andam ao lado de uma relevante, empolgante e embasada exposição bíblica e de uma desafiante chamada à metanoia. Hoje, mais do que em qualquer outro momento da história do anglicanismo, tem havido uma aproximação enriquecedora entre as correntes anglicanas. Temos testemunhado um crescimento mútuo e um mútuo compartilhar de perspectivas, visando o futuro do anglicanismo.
Como membros da futura diocese que se estabelecerá, pela graça de Deus, nestas terras anteriormente povoadas pelos tabajaras e pelos potiguares, temos a obrigação de mostrar ao resto da diocese do Recife e a esta província do Brasil um exemplo de convivência cordial e pacífica dentro dos mais elevados padrões que a inclusividade anglicana exigem. Que Deus nos desperte e nos habilite para isto.