O Diretor de Educação Teológica da Comunhão Anglicana, o Reverendo Dr. Stephen Spencer, considera as consequências que a pandemia do Covid-19 podem ter para a saúde mental e reflete sobre as lições a serem aprendidas pelos discípulos a caminho de Emaús.
À medida que o isolamento social começa a ter efeito, alguns padrões comuns de comportamento podem ser observados em todo o mundo. O mais óbvio nesse estágio inicial é um tipo de choque misturado com negação, visto recentemente no Reino Unido, quando contra todas as recomendações milhares de pessoas foram à praia e aos parques nacionais para aproveitar o sol e fazer umas miniférias. Era como se a pandemia se destinasse apenas a outras pessoas em outras partes do mundo. Em outros lugares, alguns líderes religiosos chegam a negar que o vírus possa matar membros de seu rebanho.
Uma semana depois, em parte em resposta a uma mudança de tom por parte dos governos e em parte em resposta à dura realidade de adoecerem os entes queridos, há uma atmosfera muito diferente em muitos lugares. Sentimentos de dor e culpa estão surgindo em alguns setores: “Se eu tivesse sido cuidadoso antes, talvez eu não tivesse transmitido o vírus a outros”; “Se eu tivesse sido mais firme com meu familiar idoso, ele não estaria agora lutando contra a doença.”
Expressões de raiva também estão começando a aparecer, mais explicitamente raiva dos governos por respostas lentas ou confusas à pandemia e também raiva de segmentos da população, como os “jovens”, por no princípio não levarem a sério a epidemia. À medida que as taxas de mortalidade aumentarem, esse tipo de reação se tornará mais forte e, em alguns lugares, Deus será responsabilizado por permitir que uma pandemia varra nosso planeta.
Então, como o isolamento social continua semana após semana, é muito provável que a solidão e a falta de contato humano levem a uma depressão generalizada. Já existem sinais de que os níveis de consumo de álcool aumentaram, com as prateleiras dos supermercados sendo esvaziadas de bebidas alcoólicas destiladas e outras. Com o aumento da embriaguez ocorre um aumento do abuso doméstico, já generalizado e devastador para suas vítimas.
Os dois discípulos a caminho de Emaús estavam se isolando socialmente (Lucas 24.13-14). Após o trauma da detenção, tortura e execução de Jesus, eles deixaram os outros discípulos em Jerusalém e estavam se afastando da cidade. Eles estavam contradizendo as instruções de Jesus para ficarem na cidade e esperar por ele. O mundo deles havia desmoronado e agora eles também estavam se afastando do testemunho das mulheres de que Jesus estava vivo: eles estavam em negação a tudo.
Também fica claro pela resposta direta à pergunta do estranho “Sobre o que vocês estão discutindo enquanto caminham?”, que eles estavam cheios de raiva: “Você é o único visitante em Jerusalém que não sabe das coisas que ali aconteceram nestes dias?”
Em seu isolamento autoabsorvido, eles falharam em reconhecer Jesus e podemos ver a depressão começando a emergir em sua confissão: “nós esperávamos que era ele que ia trazer a redenção a Israel.” E provavelmente também sentiam alguma culpa por não acreditarem nas mulheres.
O que acontece a seguir pode realmente ajudar nesses momentos traumáticos que estamos enfrentando. A conversa deles com o estranho abre-lhes uma porta. Sua abertura para ele e sua generosidade em compartilhar o que pensa e acredita faz toda a diferença: seus corações começam a “arder” dentro deles, e eles começam a ver as coisas de maneira diferente, param de se isolar e convidam o estranho para ficar com eles e compartilhar uma refeição. E é então que a realidade da ressurreição se revela e tudo muda.
Nesse encontro profundo, num momento decisivo da história que começa em Lucas 1 e termina em Atos 28, é possível, portanto, identificar uma série de respostas de discipulado às maneiras pelas quais os seres humanos experimentam trauma e sofrimento. Da mesma forma que o luto foi descrito como uma passagem por sete estágios, podemos descrever sete estágios de cura experimentados no caminho para Emaús e acessíveis para todos. São estágios nos quais as diversas pessoas podem superar etapas de maneiras diferentes:
- Faça uma pausa, como fizeram os discípulos quando caminharam para Emaús
- Converse com os outros, como eles estavam dispostos a fazer quando o estranho andava ao lado deles
- Fale honestamente sobre sua raiva e tristeza, como fizeram, expressando sua raiva ao estranho
- Conte como está triste e a sua lamentação, como fizeram quando expressaram suas decepções e confusões.
- Confie nos outros para lhe falar a verdade, como fizeram quando começaram a ouvir o estranho
- Assimila o que o Messias diz, especialmente ao resumir tudo o que aconteceu com base na profunda narrativa das Escrituras, começando com suas próprias palavras nos versículos 25 a 29
- Tome a iniciativa de convidar o Messias para se juntar a nós, à nossa mesa, para partir o pão, como fizeram os discípulos em Emaús.
O resultado de tudo isso foi a inspiração dos dois discípulos para voltarem a Jerusalém e se unir aos demais e levar o evangelho de cura às nações. De maneira semelhante nossa própria cura e re-inspiração podem sair da pandemia atual se nos tornarmos como os discípulos, capazes de ouvir quem anda conosco e de tomar a iniciativa como eles fizeram.
Publicado em 31 de março de 2020 no site Anglican Comunnion News Service.