Alguns pensamentos sobre a Quaresma

Publicado originalmente no dia 23/03/2003, 3º domingo na Quaresma, no boletim da Paróquia de São João

Por +Sumio Takatsu

A Quaresma está bem perto de nós. Com isso entraremos num outro ritmo e usaremos a cor roxa, sinalizando o período de preparação para a Páscoa, a celebração da ressurreição do Senhor. É importante observar que, nos quarenta dias, não se contam os domingos. Por isso, dizemos domingos na quaresma e não da quaresma. Domingo é sempre a celebração semanal da gloriosa ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem somos um povo cristão. Por isso não pode ser considerado parte da Quaresma.

Também é importante lembrarmo-nos de que as quadras do Ano Cristão surgiram e evoluíram em função do domingo e da Páscoa. A Quaresma surgiu por volta do século IV e, inicialmente, teve a função de preparar os candidatos ao Batismo na Vigília Pascal. Associou-se a isso o período de penitência dos que, gravemente, violaram os compromissos batismais. A penitência se estendeu, gradualmente, a todos. Do mesmo modo, jejum que era de dois ou três dias antes da Páscoa se estendeu ao período de toda Quaresma. Parece-nos que houve uma inclinação para o excesso de fervor ou zelo pela prática de disciplina. E sempre houve e haverá exagero que desvie o foco central para as questões periféricas. O importante é a ideia e a prática de doar alguma parte de si mesmo a outrem, para aprofundar o nosso entendimento e prática do Evangelho. Essa “alguma parte” não pode ser uniforme. Para quem tem caloria demais é bom que abandone uma boa parte, em favor de outrem. Quem está subnutrido pode ter outra expressão de amor em favor de outrem. O importante é sempre lembrarmo-nos de que a melhor expressão da religiosidade, do sacrifício e oferenda está nas palavras do profeta Miquéias: ele mostrou a você, ó gente, o que é bom e o que o Senhor exige, pratique a justiça, ame a misericórdia e ande humildemente com o seu Deus (6.8) A prescrição de comida é uma coisa que não entra na cabeça de quem lê o Novo Testamento. Nem por isso deixa de ter respeito para quem existe prescrição de comida ou de dia.

Quaresma é um período de aprofundamento da liberdade cristã como entende o apóstolo Paulo no capítulo 14 da Epístola aos Romanos com a exemplificação da comida e do dia sagrado. O que importa é que vivemos para o Senhor e ao próximo. O jejum deve ser algo voluntário. Isso me faz lembrar da reunião preparatória da Conferência de Lambeth de 1988. Foi discutida a proposta do arcebispo Desmond Tutu no sentido de ter um ou dias de jejum durante a Conferência. Colin Craston, mas tarde coordenador do Conselho Consultivo Anglicano fez interferência no sentido de os diabéticos como ele teria sua alimentação com regularidade e dei o meu apoio. Por isso um refeitório ficou aberto para quem não quer e não pode ter jejum. A voluntariedade opcional é importante naquelas coisas que não essenciais para a salvação.

É costume não dizer a aleluia durante a Quaresma para dar maior expressão de alegria na Páscoa. E me esforcei muito para que a omitisse. Não adiantou nada. E agora estou mudando de ideia partindo do fato de que a celebração do domingo é sempre pascal. Além disso, o termo aleluia significa louvemos ao Senhor e vem dos Salmos 104 a 150 e de Apocalipse 19.1. É expressão de louvor e sempre louvamos ao Senhor e, mormente, nos domingos. Pode-se abster do Gloria in excelsis como se prevê.

Também é costume não ter flores na Igreja durante a Quaresma. O racional de retirar as flores é alguma coisa assim. Retiram-se as flores para aguardar a experiência de explosão da exuberância das flores. Se isso for o caso, porque não colocar aquelas flores miudinhas que parecem mortas mas sempre vivas, em sinal de que aguardam o momento do florescimento espantoso na Páscoa? Na verdade, os salmos exortam todas as criaturas, (principalmente, 148) a render louvores a Deus. Na oração B, dizemos, com eles… dando expressão a toda a criatura debaixo céu, nos te aclamamos… Hoje as Igrejas estão recuperando o ensino bíblico sobre o meio ambiente. No que se refere à presença das flores na Igreja, é possível dizer que há ritmo das quadras e das estações do ano. Mas é verdade, também, que pode dar expressão ao tempo de espera com flores acima indicadas, por exemplo. As questões de ornamentação, de vestes e de cores têm muito a ver com a cultura donde esses costumes se desenvolveram e a cultura evolui e tem sua relação estreita com o clima.

Tudo isso não deve ser uniforme. Parece-nos que algumas paróquias nos Estados Unidos onde se experimenta a co-existência de gente originária de diferentes culturas têm uns três horários diferentes de culto aos domingos. Num horário, a liturgia é na linguagem tradicional do inglês, noutro, com a linguagem de hoje com hinos de tipo diferente, no terceiro, uma outra variação, tendo todos eles em comum o uso do Livro de Oração Comum, os mesmos próprios do dia e o mesmo sermão. Nesse sentido, a Paróquia de S. João é um lugar privilegiado para o crescimento na comunhão, na unidade em Cristo, longe da uniformidade que sempre deturpa a unidade. A inclusividade que os anglicanos têm por ideal deve facilitar diferentes experiências numa só comunhão e comunidade. Para tanto, é imprescindível que nos aprofundemos no essencial na caminhada para a Páscoa, sem esperar que os outros sejam iguais a nós, sem ter que sentir vergonha quando não parecemos com a expectativa de outros. A Quaresma é o período de aprofundamento da liberdade em Cristo.

Quaresma de 2003