O Ministério Episcopal – Uma reflexão a partir do Novo Testamento e do Redescobrimento da Patrística

Reverendo Benedito Tadeu dos Santos
(Mestre em História Social – PUC-SP)

Uma Igreja Ministerial

A presente reflexão tem como objetivo expor questões sobre a Teologia do Ministério, tendo como ponto inicial o movimento de Jesus e seus desdobramentos históricos.

Partimos da proposta difundida por diversos teólogos de que a Igreja é formada por diferentes Ministérios[1], onde todas as pessoas batizadas fazem parte do sacerdócio comum dos fiéis[2]. Numa feliz analogia, o Apóstolo São Paulo, em sua primeira carta à comunidade de Corinto, no capítulo 12,12-27, compreende a Igreja como sistema orgânico, onde os membros da comunidade são tal como membros de um corpo, e Cristo é a cabeça. Paulo, entretanto, reconhece que o corpo possui vários membros, cada qual com a sua função determinada pela natureza, de maneira própria e particular. A partir dessa premissa, podemos articular uma Teologia dos Ministérios, onde todas as pessoas batizadas fazem parte do sacerdócio comum/universal dos fiéis, desenvolvendo assim, os dons e carismas para a edificação do Corpo de Cristo que é a Igreja, e santificando o mundo como testemunhas da ressurreição. Porém há Ministérios específicos e atuantes na vida da comunidade de fé, que ganham legitimidade e múnus para o exercício de suas funções eclesiais.

Teologia dos Ministérios no Novo Testamento.

Conforme a análise de Brown[3] é possível pensar os Ministérios a partir de conceitos herdados do Antigo Testamento, porém, o ofício do “sacerdote do templo” não aparece como figura relevante no Novo Testamento, até porque há a ruptura entre as práticas religiosas no templo e a proposta da nova aliança anunciada por Cristo, onde os sistemas são invertidos e ressignificados pelas primeiras comunidades. Para o autor (BROWN) o sacerdócio como compreendemos na contemporaneidade, parte da íntima ligação com a confissão fé, apresentada pelo autor sagrado da carta aos Hebreus, onde Cristo recebe o título de Sumo Sacerdote (Hb. 9,11) e os Apóstolos herdeiros desse Ministério, segundo a tradição.

No entanto, quando nos deparamos com os escritos do Novo Testamento, não encontramos de maneira clara e específica a origem da Teologia dos Ministérios. Faz-se pertinente num primeiro momento, reconhecer a diferença entre o grupo dos 12 discípulos (Mc. 3,13-19) e os Apóstolos. O grupo dos 12 discípulos tem caráter e legitimação de Apóstolos[4], todavia, os demais homens e mulheres que tiveram uma experiência de fé com o Cristo ressuscitado, não necessariamente fizeram parte do grupo dos 12 ou mesmo dos primeiros (as) seguidores (as) de Jesus. Estes primeiros discípulos se sentiram seduzidos pelas palavras e gestos de Jesus, mesmo não compreendendo nitidamente o projeto do Reino (Mt. 16,22).

Após a morte, ressurreição e ascensão do Senhor o grupo mais íntimo que conviveu com Jesus, tornou-se testemunha da ressurreição e arautos de uma Boa Notícia (Evangelho), formando assim, um novo grupo, o dos Apóstolos, isto é, os que foram enviados em missão.

Não encontramos nos escritos canônicos do Novo Testamento a estrutura hierárquica como as igrejas que preservam a catolicidade compreendem tais Ministérios na atualidade. O que percebemos é uma realidade conforme aponta o Bispo Sumio Takatsu:

“Na Igreja Primitiva bem pode ter tido uma considerável diversidade na estrutura do Ministério Pastoral, embora esteja claro, que alguns deles eram administrados por ministros que eram chamados de Episcopoi e presbyteroi… não há nenhuma evidência de que Bispos e Presbíteros fossem nomeados em toda parte na Igreja Primitiva”[5].

Compreende-se que tanto o Bispo quanto o Presbítero exerciam as mesmas funções pastorais e administrativas. Apesar de possuir os mesmos atributos ministeriais, as palavras “Presbítero” e “Bispo”, possuem conotações distintas. Numa livre tradução do grego, Presbítero é o ancião, o velho, membro do conselho; Bispo, palavra também de origem grega que deriva da junção de um adjetivo e um verbo: “epi” (super) e “skopos” (ver); literalmente, podemos traduzir por supervisor, superintendente, um fiscal.[6] Em seu dicionário Taylor, ao analisar ambas as palavras, também não faz diferença entre as funções. Podemos aventar que nas comunidades primitivas, os Bispos e os Presbíteros eram tidos como pastores, não havendo diferenciação no grau de importância ministerial. Diferente dos Diáconos que são citados nas cartas de São Paulo a Timóteo (I Tm. 3,1-12), pessoas com um ministério específico, de servir aos pobres.

Constatamos essa realidade quando comparamos as cartas que Paulo escreveu a Tito (1,7-9) e na primeira carta a Timóteo (3,1-7). No pensamento paulino não há a presença de uma hierarquia formal ou diferenciada de atributos entre os Bispos e Presbíteros. Veremos em ambas as epístolas exortações similares tanto aos Bispos e Presbíteros. A partir desse postulado, surge um questionamento: Como as igrejas que professam sua catolicidade e apostolicidade, chegaram ao formato de estrutura hierárquica que as define como episcopais?

Não podemos esquecer que a Igreja é de Cristo, porém, possui uma historicidade. Já confrontados com os escritos do Novo Testamento, concluímos que apenas a figura dos Diáconos é definida (At.6,1-vs), e que não havia diferença hierárquica entre Bispos e Presbíteros, mesmo no belíssimo testamento de Paulo, exposto no Livro dos Apóstolos (20,17-37), quando em Mileto, o Apóstolo convoca os Presbíteros de Éfeso para dar suas últimas instruções. Com tais exposições, compreendemos que os Ministérios de Bispos e Presbíteros não são fruto de uma organização homogênea e pensado de maneira institucional ou teologal, como compreendemos hoje. Os desdobramentos são históricos, porém, não podemos desconsiderar a ação do Espírito Santo (Jo. 3,8) na história humana, como afirma o teólogo Von Balthasar, a história de Deus é também a história da humanidade[7].

Na Didaqué, o primeiro manual de catequese dos cristãos que se preparavam para receber o santo Batismo, não há referências à figura dos Presbíteros, mas dos Bispos e Diáconos. Os textos originais não fazem alusão sobre a escolha de um Presbítero em destaque, escolhido pelo colégio (grupo) de presbíteros[8]. Em sua carta a Filemon, na saudação, São Paulo compreende Timóteo e Filemon como colaboradores no ministério, mas não lhes concede títulos de Bispos ou Presbíteros (Fl 1,1).

Século XVII – Redescobrindo a Tradição (Inácio de Antioquia)

Por volta do ano 107 da era cristã, conforme aponta Wrigth[9], Santo Inácio de Antioquia em suas reflexões teológicas, reconhecendo-se herdeiro dos ensinamentos dos Apóstolos, define a tríplice hierarquia (Diáconos, Presbíteros e Bispos), compreendendo que essa estrutura organizacional seria uma maneira de melhor servir à igreja, o povo de Deus. Para Santo Inácio a união com a hierarquia era prerrogativa para a união com Deus:

“…cheguei a ver e a amar pela fé toda a comunidade, exorto: Esforçai-vos por fazer tudo na harmonia de Deus sob a presidência do Bispo em lugar de Deus e dos Presbíteros em lugar do colégio dos apóstolos… Nada haja entre vós que possa dividir-vos, mas uni-vos com o Bispo e com os presidentes, para constituirdes uma imagem e um ensinamento de imortalidade.”[10]

Para Santo Inácio, o Bispo era símbolo concreto de unidade entre a Igreja e quem presidia sobre os demais ministérios eclesiais, por isso digno de honra. Mas na condição de Pastor dos pastores, possuía a responsabilidade de não apenas supervisionar, mas de cuidar e garantir que os ensinamentos dos apóstolos fossem seguidos e observados como verdade divina.

Importante ressaltar que os documentos históricos, de maneira particular as cartas de Santa Inácio, que apontam a origem da tríplice hierarquia na vida da Igreja, foram descobertos no ocidente cristão e publicados no séc. XVII, por meio das pesquisas de dois Bispos Anglicanos, Ussher e Pearson. A partir de seus estudos sobre a obra de Santo Inácio de Antioquia, a Igreja da Inglaterra passou a adotar uma doutrina mais sóbria sobre o Episcopado, não apenas considerando esse Ministério como um elemento importante para o bem estar da Igreja, mas um conceito quase que de direito divino, conforme Wrigth[11], possivelmente, uma formulação teológica em resgate da tradição apostólica, tendo como objetivo, fomentar um debate com os Puritanos que tendiam a ver/ compreender o Ministério Episcopal como um elemento importante para o bem estar da Igreja, porém, não essencial.

Assim, compreendiam os Bispos Anglicanos Person e Ussher no século XVII, tendo como paradigma as cartas apostólicas de Santo Inácio, que reafirmam na tradição da Igreja, a essência própria do Ministério Episcopal não apenas como uma necessidade de supervisão, mas de um Pai em Deus para o povo de sua Diocese.

Segundo a tradição apostólica da Didaqué, a Igreja como instituição humana, teve a necessidade de uma organização formal. Num primeiro momento, os Bispos eram escolhidos pelo povo por seu carisma e dignidade[12]. Percebemos a evolução do Ministério Episcopal de maneira natural em conformidade com as demandas das primeiras comunidades. Certo é que a concepção de Episcopado histórico, tendo como fonte a Didaqué, a sucessão apostólica se dava por aclamação popular, momento em que a comunidade, unida em práticas piedosas, com oração e jejum, rogava para que Deus escolhesse um pastor que fosse dócil, desprendido, firme e fiel à doutrina dos Apóstolos e à liturgia dos profetas, doutores e mestres[13].

Não havia respaldo canônico ou sacramental, como hoje, antes, compreendia-se como uma ação do Espírito Santo com o propósito de fortalecer a unidade da Igreja e transmissão dos ensinamentos dos apóstolos às gerações futuras.

Referente ao Episcopado histórico, afirma-se que os Bispos são sucessores dos apóstolos, por seu múnus de guardiões da “verdadeira” doutrina. Contudo, o Episcopado histórico não pode ser visto de maneira linear, pois as primeiras comunidades possuíam diferentes concepções teológicas, ministeriais e doutrinais[14].

Supomos que na reflexão de Inácio de Antioquia sobre a Teologia dos Ministérios e da elevação do Bispo como símbolo de unidade eclesial, era uma “garantia” de que pelos séculos seguintes, as comunidades, mesmo que historicamente, conservariam a sucessão apostólica, bem como os ensinamentos. O que de fato não ocorreu na história do cristianismo, marcada por inúmeras cisões.

Comunhão Anglicana e Episcopado Histórico

Por meio dessas máximas, a Comunhão Anglicana, expressão que surgiu no século XIX, no ano de 1885[15], na condição de Igrejas independentes em plena e permanente comunhão com a Sé de Cantuária, reconhecendo a diversidade de expressar a fé em Jesus Cristo Ressuscitado e da importância do acolhimento do povo à missão de Deus, busco compreender o Episcopado histórico como um símbolo de unidade na diversidade. Sem uma teologia oficial, tendo como paradigma um método teológico fundamentado nas Escrituras Sagradas, na Tradição e na Razão, todo o caráter do Ministério Episcopal encontra-se no (Ordinal) Rito de Ordenação e Sagração no Livro de Oração Comum, presente nas diversas Províncias da Comunhão.

Considerações Finais

O Bispo (a) como símbolo de unidade, colegialidade e autoridade, é o guardião da fé e da disciplina em sua diocese, servindo como mordomo dos bens espirituais e temporais. É prerrogativa do Bispo (a) também, iluminado pelo Evangelho, continuar a missão dos apóstolos, sendo semente do Reino nos diferentes contextos sociais.

Partimos do pressuposto que na Igreja Primitiva não havia consagração, nem mesmo clareza com relação às atribuições e o caráter episcopal, na contemporaneidade a Comunhão Anglicana, herdeira de uma catolicidade e do Episcopado histórico, entende que o Bispo (a) na sua Diocese, representa toda a Igreja, sendo pastor (a) de todos (as), legalmente investido como presidente ex-officio nos Concílios e demais comissões diocesanas.

Conforme os escritos paulinos, sem muita definição das funções de Bispos e Presbíteros (Paulo era um fundador de Igrejas e não um pastor vinculado a uma instituição) uma das possíveis leituras no anglicanismo é que o encargo pastoral não é apenas do Bispo (a), mas de toda a família diocesana, que envolve clérigos (as) e leigos (as); voltamos ao princípio dessa reflexão de que a Igreja é toda ministerial. Assim sendo, para que o projeto do Reino tenha êxito não depende apenas do Bispo (a), pois seu Ministério é compartilhado.

Seu caráter não é apenas de supervisor (conforme a etimologia da palavra, e conceitos neo-testamentários), mas paternal/maternal, e não paternalista, como muitos desejam. No desenvolvimento histórico da teologia dos Ministérios, o episcopado é elemento essencial para alimentar as comunidades locais, espiritualmente, sendo pai/mãe e não foco das atenções. Fator relevante é não esquecer que seu caráter de episcopal, o (a) torna servo (a) de todos (as), e que, com os membros de sua diocese, ele (a), também pertence ao rebanho de Cristo. O que delega às pessoas clérigas e leigas, o devido cuidado, zelo e respeito ao Bispo (a), pois só assim, na vida em caridade e unidade, o Bispo (a) terá forças para conduzir o povo de Deus na missão.

Notas

[1] DUNN, J. D. G. Unidade e Diversidade no Novo Testamento – Um Estudo das Características dos primórdios do Cristianismo. Santo André: Ed. Academia Cristã, 2009, p. 200.

[2] Resumo a Fé Cristã – Comumente Chamado Catecismo. Porto Alegre: Ed. IEAB. 2000, p. 22

[3] BROWN, R, E, S.S. Reflexões Bíblicas – Sacerdote e Bispo. São Paulo: Ed. Loyola, 1987.

[4] Para alguns exegetas, o grupo dos 12 é uma alusão as 12 tribos de Israel.

[5] TAKATSU, Sumio. Reflexão a partir da Declaração de Cantuária sobre o Ministério Ordenado. ARCIC.

[6] TAYLOR. Dicionário do NT. Grego. São Paulo Ed. Batista Regular, 2000, p.182.

[7] VON BALTHASAR, H. U. Teologia da História. São Paulo: Ed. Novo Século, 2003, p. 49.

[8] ZILLES, U. (Org.) Didaqué – Catecismo dos Primeiros Cristãos. 2ª. Ed. Petrópolis: Ed. Vozes. 1971, p.79-81.

[9] WRIGHT, J. R. As Origens do Episcopado e Ministério Episcopal Na Igreja Primitiva. Tradução: TAKATSU, Sumio. São Paulo, 30/12/1996.

[10] SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA. Cartas de Santo Inácio aos Magnêsios. Petrópolis: Ed. Vozes, 1978, p. 52

[11] WRIGTH, J.R. Op. cit, 1996.

[12] ZILLES, U. Op. cit, 1971, p. 40

[13] Idem.

[14] DUNN, Op. cit, 2009, p. 216.

[15] OLIVEIRA, Vera Lúcia Simões. História do Anglicanismo na Inglaterra. São Paulo: Ed. Fonte Editorial/ CEA, 2017, p.353.

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